quarta-feira, 9 de setembro de 2009



A realidade Foi.

Durante muito tempo, era só o cumprimento, o desejo de bom dia, boa tarde, boa noite, bom fim de semana… Nada de coisas íntimas.
Um dia, vá lá saber-se porquê, a conversa prolongou-se.
Ambos quiseram saber mais um do outro.
O que gostavam, o que queriam da vida, em que situação se encontravam, onde trabalhavam, onde estudaram, o que gostavam de comer, o que gostavam de ler… Enfim, aquilo que faz falta conhecer, para que as pessoas sintam o que há de comum ou não, entre elas…
Todos os dias conversavam por longos períodos, interrompidos pelos afazeres quotidianos.
Deixou de ser conversa de circunstância. Passou a ser conversa mais profunda.
Trocaram fotografias…
Mas, não se conheciam pessoalmente. Tratavam-se por você.
Mas fumavam juntos… e até café partilhavam…Depois,
Durante algum tempo foi conversa de sedução.
Trocaram gostos sobre sobremesas, sobre desejos, não sei porquê, mas frequentemente envolvendo comida, bebida, mesas de jantar…
Encenaram o que poderia ser um encontro, entre os dois, como se um e outro, fossem as melhores companhias do mundo.
São transportados para um “ambiente lindo, de pouca luz, com velas aromáticas a despertarem sentidos e uns belos gin’s já bebidos, a desinibir atitudes” No final descobrem que foi uma brincadeira.
Um dia… melhor, uma noite, a conversa evolui, creio que ainda na brincadeira, e começa uma cena de teatro, com actos e tudo.
Ele chega. Encontram-se num local sem muita confusão… discreto… apercebem-se que são eles. Dão um beijo… Apresentam-se.
Depois de um jantar muito agradável, resolvem tomar uma bebida num lugar qualquer. Tem com ela uma garrafa de vinho tinto e dois copos. Após negociação vão ao sítio escolhido tomar um copo e ver as estrelas. A conversa está agradável, a noite quente, a lua está cheia, o vinho começa a fazer efeito.
“Arriscas ou não?
Mas pelo menos lembra-te de mim de vez em quando…
Arrisco e não desapareço, eu prometo que não!!!!!!!!!!!! Atreve-te!”
À entrada, há pétalas de rosa branca espalhadas pelo chão que ela amachuca com os pés, salpicados com areia da praia.
O seu cabelo roça a boca dele e foi escolhido um sítio lindo, rodeado por um tabuleiro de xadrez, separado por oliveiras.
Caminham de mão dada como se o namoro os acolhesse.
A noite continua clara e o céu estrelado entre dois cigarros fumados, no intervalo de um sonho e no jogo de xadrez que paira por baixo deles.
E vem mais um cigarro. E mais uma partida daquele xadrez, que te olha como se tu não o visses, ali quieto e calmo à espera de outro cigarro… E foram mais.
A noite continua clara e luminosa. Ao fundo, o escuro de quem não quer ver, nesse momento, o que está para além das estrelas.
Foi estranho. Foi diferente. Foi a surpresa. Surpresa, sim. Não foi o sonhado. Não foi o desejado. Foi simplesmente. Foi.
Claro que sendo um sonho, uma construção, não poderia ter sido melhor. O sonho tem a característica de nos empurrar para aquilo que desejamos e construímos com a nossa mais íntima e por vezes inconfessável fantasia.
Mas um sonho, sonhado sozinho, é um sonho. Um sonho, sonhado a dois, é realidade. E a realidade Foi.
Não teve dois copos, não teve uns gin’s já bebidos, não teve pétalas brancas nem grãos de areia, nem todo o enleio antes trocado.
A realidade Foi.
Hoje não há sedução, não há longas conversas, não há partilha, nem risos nem brincadeiras, não há tempo, não há a vontade que chegue, não há o intervalo dos afazeres, não há enleio, não há a esperança de um gesto que hás-de fazer, não há jogos de xadrez, não há Sonho.
Os sonhos são sentimentos, que não se podem prender, qual cavalo selvagem que dificilmente se domina.
São como rios que sempre chegam ao mar, ainda que construídas várias represas.
São com as estradas sem sinalização que te alerte para os perigos.
São como o vento que nada nem ninguém consegue deter.
Fazem tanta falta como o fogo, que queima, mas que todos precisamos sentir.
Os sonhos são sentimentos que florescem no coração, qual rosa branca, a das pétalas que nunca existiu, e que por vezes deixa os seus espinhos.
Por isso são sonhos.
A realidade é bem outra. Até porque o sonho é comummente um acto solitário e a sua materialização, neste caso, é um acto a dois.
Não depende de um só sonho. Depende da comungação de dois sonhos, que dificilmente se transforma num sonho comum.
Hoje li e reli. Fechei meus olhos e queria trazer o sonho de volta. Tive saudade daquele sonho. Fez-me bem ter saudade. Não, não sou fraca nem revivalista. Sinto saudade e essa saudade faz de mim um ser humano em crescimento.
Há sonhos que merecem ser ressonhados. Este merecia.
"Sonhar é acordar-se para dentro". (Mário Quintana)
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"Folha Caída"

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Noite de Sonhos Voada

Noite de sonhos voada
cingida por músculos de aço,
profunda distância rouca
da palavra estrangulada
pela boca armodaçada
noutra boca,
ondas do ondear revolto
das ondas do corpo dela
tão dominado e tão solto
tão vencedor, tão vencido
e tão rebelde ao breve espaço
consentido
nesta angústia renovada
de encerrar
fechar
esmagar
o reluzir de uma estrela
num abraço
e a ternura deslumbrada
a doce, funda alegria
noite de sonhos voada
que pelos seus olhos sorria
ao romper de madrugada:
— Ó meu amor, já é dia!...

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"Manuel da Fonseca"

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