sexta-feira, 24 de julho de 2009

Maktub

Bateste à porta na madrugada de um dia estranho.
Mas bateste à porta, sem pedir autorização.
Eu entreabri a porta dos meus olhos e por entre a cortina das minha pálpebras foste espreitando, sentindo, fumando, cheirando, olhando, perfumando, saboreando.
Utilizaste-os todos, sim a eles:
- Os sentidos…
Abri a porta…
Espreitaste, olhaste, sentiste, fumaste, perfumaste, cheiraste e saboreaste, entraste.
Falaste, falámos, respondi e tu não.
Falei, senti, cheirei, fumei, saboreei evadiste e eu não.
Foste.
Foste e enigmaticamente ias e vinhas…
Eu fui ficando.
Eu fui sonhando
Eu fui fumando.
Eu fui fechando a porta de meus olhos e por fim a cortina das minhas pálpebras quase se tinha colado.
Fechei a porta.
As pálpebras fecharam e as suas sedas deixaram de deixar entrar a luz. Aquela luz!
Outras luzes entravam, e a sensibilidade à luz, à tua luz, tinha deixado de existir.
Bateste à porta…
Desta vez anunciando-te…
Entreabri e porta e de súbito abri-a.
Entraste.
Já não espreitaste!
Entraste e abri o meu porto de abrigo.
Desarrumaste docemente a minha vida e eu docemente deixei, e mesmo docemente desejei, porque no meu porto de abrigo só entram veleiros que têm vela colorida.
Para desfrutar de um veleiro com vela colorida é preciso amarar…
E tu amaraste!
O veleiro tem vela colorida, de várias cores, de muitas cores, sem preto nem branco. Essas são simplesmente características da luz. Mas é um veleiro com vela colorida.
A cama está desfeita, desfeita sim e não a voltei a faze-la.
Mas mesmo desfeita, ela está por fazer…
Ela foi e é a banheira da tua água e a cuba da tua fadiga.
Maktub que um dia ela era desfeita!
Maktub que um dia batias à porta!
Maktub que um dia eu fechava a porta!
Maktub que um dia voltavas a bater!
Maktub que um dia eu voltava a abrir a porta!
Maktub que um dia ela era desfeita!
Maktub que um dia…
Maktub

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"Folha Caída"
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Quero um cavalo de várias cores

Quero um cavalo de várias cores,
Quero-o depressa que vou partir.
Esperam-me prados com tantas flores,
Que só cavalos de várias cores
Podem servir.
Quero uma sela feita de restos
Dalguma nuvem que ande no céu.
Quero-a evasiva - nimbos e cerros -
Sobre os valados, sobre os aterros,
Que o mundo é meu.
Quero que as rédeas façam prodígios:
Voa, cavalo, galopa mais,
Trepa às camadas do céu sem fundo,
Rumo àquele ponto, exterior ao mundo,
Para onde tendem as catedrais.
Deixem que eu parta, agora, já,
Antes que murchem todas as flores.
Tenho a loucura, sei o caminho,
Mas como posso partir sózinho

Sem um cavalo de várias cores?

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Reinaldo Ferreira

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1 comentário:

Jotas disse...

Já tinha saudades de ler a beleza da tua prosa, que lindo.